quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Crivo

João,

Minha primeira lembrança da cidade é a de varandas e casarões. 
Conversávamos tanto sobre isso, não é? Nos conhecemos em outros dias, bem depois destes. Então adoravas escutar tudo "da época que não fez parte de nós". 
Desconfio até hoje, que o que gostavas mesmo, era saber que eu, menina nascida e criada no bairro do Tambiá (e isso significava ser "de elite") dividia contigo por aqueles tempos tantas  opiniões políticas comumente definidas por meus pais como " perigosas e revolucionárias". 
Ai quantas aspas, João, quantas aspas... 
Para mim, quando criança significava apenas a obrigação em comparecer à missa matinal de domingo na catedral. 
Lembra que você adorava minha história sobre "as gentinhas" de que minha mãe falava e que eu morria de curiosidade de conhecer, pensando que eram anões ou que podiam caber na minha mão?
Só as encontrei ou reconheci o que eram lá pelos seis anos de idade, quando uma mãe com uma cara horrorizada, mãos enluvadas e nariz retorcido, apontou para uma delas, um pobre que se atrevera a colocar-se na nossa frente, às suas vistas, no seu bairro, durante o percurso até a catedral. 
Muitos anos depois, foi você que me contou que apesar de não haver proibição expressa, estas pessoas "conheciam o seu lugar" e este lugar, pela cara da minha mãe, certamente não era na nossa rua.   
Então hoje quando ví um olhar parecido na minha vizinha ao enxergar um mendigo (viciado desgraçado- palavras dela) me deu vontade de apresentá-la à minha mãe. 
Porque eu sei, João, que com certeza a tal vizinha não passaria pelo crivo de tão terrível senhora, assim como o "viciado desgraçado" não passara pelo dela. 

Saudades, da sempre sua (e pobrinha) 
F.

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