quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Crivo

João,

Minha primeira lembrança da cidade é a de varandas e casarões. 
Conversávamos tanto sobre isso, não é? Nos conhecemos em outros dias, bem depois destes. Então adoravas escutar tudo "da época que não fez parte de nós". 
Desconfio até hoje, que o que gostavas mesmo, era saber que eu, menina nascida e criada no bairro do Tambiá (e isso significava ser "de elite") dividia contigo por aqueles tempos tantas  opiniões políticas comumente definidas por meus pais como " perigosas e revolucionárias". 
Ai quantas aspas, João, quantas aspas... 
Para mim, quando criança significava apenas a obrigação em comparecer à missa matinal de domingo na catedral. 
Lembra que você adorava minha história sobre "as gentinhas" de que minha mãe falava e que eu morria de curiosidade de conhecer, pensando que eram anões ou que podiam caber na minha mão?
Só as encontrei ou reconheci o que eram lá pelos seis anos de idade, quando uma mãe com uma cara horrorizada, mãos enluvadas e nariz retorcido, apontou para uma delas, um pobre que se atrevera a colocar-se na nossa frente, às suas vistas, no seu bairro, durante o percurso até a catedral. 
Muitos anos depois, foi você que me contou que apesar de não haver proibição expressa, estas pessoas "conheciam o seu lugar" e este lugar, pela cara da minha mãe, certamente não era na nossa rua.   
Então hoje quando ví um olhar parecido na minha vizinha ao enxergar um mendigo (viciado desgraçado- palavras dela) me deu vontade de apresentá-la à minha mãe. 
Porque eu sei, João, que com certeza a tal vizinha não passaria pelo crivo de tão terrível senhora, assim como o "viciado desgraçado" não passara pelo dela. 

Saudades, da sempre sua (e pobrinha) 
F.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Presente

Série: Artérias
Artista: Antônio Filho
Técnica: nanquim s/ papel vegetal
Ano: 2010

Telhas

"Nasci 
Nasceu 
Cresceu 
Namorou 
Noivou 
Casou 
Noite nupcial 
As telhas viram tudo 
Se as moças fossem telhas não se casariam." 
Anayde Beiriz

Folha

Amado João,

Estava andando pela lagoa e cansei. Por não ter dormido ainda, pelo sol ter me esquentado os pensamentos que dispersos e suados brincavam de lembrar ou simplesmente por não ser mais a garotinha que brincava por aqui há tantos anos antes de.
Sei que acabei sentando num dos bancos, o único vazio entre os ocupados por gente que não me conhece. Acabei entristecendo, assim, como quem desiste. 
Foi quando ví, como num milagre, a tal da folha. Ela voou seca e silenciosa do pau d'arco que já nos serviu de telhado, para finalmente descansar num pedaço de galho desmaiado alí, pertinho de meu pé. 
Pensei: Morrer devia ser bonito assim. Encontro.

F.

Escrivaninha

Querido João,

Acabei de arrumar a escrivaninha que me acompanha há tanto tempo. 
Mesmo sem uso, nossa velha Olivetti continua por aqui, cinza-claro na madeira marrom-escura. Coloquei nela uma folha. Branquinha e inocente, tal qual uma normalista. Assim ela ficará, acho. Sempre fui boba, sabes. Também sabes que de alguma forma estranha, nos últimos anos tem me tranquilizado olhá-la, essa quase peça de museu, enchendo-me de boas lembranças enquanto me entrego ao hábito da construção de palavras e frases e argumentos, agora sem utilizá-la para esses fins e começos. 
Deu-me mote para tantas elocubrações as coisas que mudam e as que nunca, João.  
Por exemplo, ainda continuo "datilografando" rápido, mas esse pouco barulho nas teclas do meu novo computador, escolhido por D. para a "velha", por ser capaz de armazenar as minhas tantas letras e fotos e histórias lá na sua memória (que deve ser bem melhor que a minha) acabam, com seu silêncio asséptico e tecnológico, por me inibir um pouco. Estarei com saudades dos tics, tacs e claps e vruns da nossa máquina de escrever? Eram esses barulhos que tornavam o processo de materialização das idéias mais perto, mais real? Ou estou dramatizando e apenas gosto das onomatopeias de forma geral?
Como disse, deu-me mote... 
Talvez a aposentadoria e a volta para casa, para nossa terra, depois de tantos anos, tenham me envelhecido mais do que eu supunha (olha o tempo, esse danado e suas implicações reaparecendo nesta missiva). Ou muito pelo contrário, por sentir-me jovem novamente, sinto falta das minhas idiossincracias de mocinha. Nunca somos tão cheio delas do que quando ainda. Ainda.
Mas falemos disso depois...
Prefiro, por enquanto, continuar lhe contando das arrumações delicadas aqui no escritório.
Os lápis foram apontados com esmero, as canetas que resolvem me falhar jogadas fora, os livros já me encaram de seu habitual lugar. Reconheci agorinha mesmo um Ariano me acenando. A querida Anaïs.  Reencontrei os conhecidos foi na estante, não na minha antiga rua, veja só que coisa, João!
O resto da casa continua um tanto quanto caótica, ouso confessar. Mais tarde talvez, depois de caminhar pela cidade que me tem de volta, olhando os ipês amarelinhos ventando em flor, resolva de uma vez por todas, findar com essas coisas todas tão fora de seus lugares. 
E eu, João?  Estarei  no lugar certo?

Da sempre sua, F.